Autor: Rodolfo C. Martino
Era uma dessas sextas ensolaradas de uma estação qualquer de um impreciso ano do passado algo remoto. Jornal nas ruas, a Redação resolveu comemorar mais uma semana de vida mais do que vivida.
A bem da verdade, bastava o Nasci dizer “vamos” – e lá íamos nós.
Começamos pela padaria da esquina da rua Bom Pastor com a Lucas Óbes. A primeira parada justificava-se por dois motivos: beber umas e outras e olhar a filha do portuga, a bela Marina, que vez ou outra dava o ar de sua graça por ali e ajudava o pai e a mãe no sacro ofício de dar de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede.
Explico logo que o meu pessoal, nessa hora, tinha sede. Muita sede.
Eu, não. Como meus cinco ou seis leitores sabem, só tomo Coca Light. Talvez nesses esmaecidos tempos, minha preferência variava entre a Coca normal e a Ginni – quem se lembra? Já os meus camaradas derrubavam legal dúzias de cervejas que rebatiam com goladas de cachaça ou de uma bebida estranha, chamada stainegger.
Lá, ríamos e contávamos nossas prosas vividas ou inventadas – importante era o enredo – até que, inevitável, batesse uma “fominha esperta” que nos levava a algum restaurante onde ficávamos até o dono nos expulsar. Naquela noite, se bem me lembro, foi O Rei do Frango Assado, ali na rua Padre Marchetti, próximo à avenida Nazaré.
Alguns debandavam no meio da jornada. Uns já não se agüentavam em pé. Outros começavam a regular a grana e também ficavam pelo caminho. E havia os que não tinham coragem de acompanhar a horda de breacos. Eram os sensatos.
No primeiro grupo, o dos trança-pernas, nunca me inclui. No segundo, o dos durangos, também não. Tinha um acerto com os mais chegados e rateávamos a parte de quem atravessava um momento difícil. Nunca tive vocação para herói. Mas, nessa noite, mesmo um tanto atarantado, eu fui...
II.
Às vezes, penso que não aconteceu nada do que aconteceu ali naquele fim de noite de sexta e início da madrugada de sábado. Foi surreal. Tenho a impressão de que posso ter inventado; mas, juro, não inventei, não.
Aconteceu.
Vou tentar descrever o cenário.
O enorme salão do tradicional restaurante vazio e às escuras. Ou melhor, quase vazio e quase às escuras. Só havia iluminação em dois pontos. À esquerda de quem entrasse ali àquela hora, veria uma fileira de garçons junto ao balcão e o caixa, contrariados, aflitos e silenciosos. Ao fundo, quebrava a penumbra a luz sobre a mesa onde se encontravam meia-dúzia de ‘gatos pingados’. Eu, inclusive.
O pessoal da Casa já havia tentado de tudo para abreviar nossa estadia por ali. Em outras palavras, os senhores ali queriam mesmo era nos expulsar e fechar o recinto. Tiraram as toalhas das mesas, subiram as cadeiras, andaram em rodopios retirando os pratos da nossa mesa; os copos, não, pois não os largávamos.
Chegaram a dizer – golpe baixo – que o chopp havia acabado.
-- Que venha cerveja, então, saudou o Nasci.
Vieram duas garrafas prontamente sorvidas e aí – outro golpe baixo – passaram a nos servir cerveja quente. O que, diga-se, só aumentou a ira do Nasci que, à essa hora, discorria sobre os filmes do Truffaut que ele nunca assistiu.
Não tínhamos noção das horas. Nos divertíamos – e ponto.
Lá pelas tantas apareceu um senhor de expressão amarfanhada, como se o tivessem tirado da cama. Tinha cara de poucos amigos e já entrou bronqueando com os funcionários. Alguém dali havia ligado para o tal, o dono do restaurante, e agora ouvia o sermão. Aliás, todos ouviam.
Não vou lembrar as palavras, mas o teor me é inesquecível. Não queria o estabelecimento aberto até àquela hora. Já havia avisado. Questão de segurança. Se desse algum problema, mandaria todos embora por justa causa. Ainda porque não conseguiam se livrar “de um bando de bêbados”.
Indignado com as palavras do homem, que sei lá como ouviu mesmo etilicamente nas alturas, Nasci levantou-se e, no mesmo tom, vociferou:
-- Garçom, a conta! Vamos embora, essa espelunca não é digna da nossa presença.
Saímos temerosos.
O que deu no Nasci?
Para onde foi o proverbial bom-humor?
-- Para o Bixiga, meus caros. Vamos para o Bixiga, lá os bares nunca fecham.
O bom-humor estava ali - aliás de onde nunca saiu. Nós é que estávamos sem rumo...
III.
Não sei se vocês já ouviram a voz da razão. Ou se, por vias das dúvidas, colocaram a mão na consciência. Não sei.
Àquela época, em que era jovem e inconseqüente, talvez imaginasse que essas expressões populares fossem apenas invencionices de Dona Yolanda, minha mãe, que vivia a repeti-las aos meus ouvidos - até porque, como disse, eu era jovem e inconseqüente.
Não que lhe desse grandes motivos. Me considero até hoje um cara pacato, comedido até; pois, como disse nos posts anteriores, só tomo Coca Light. Nem de cerveja eu gosto.
Enfim...
Sei lá por qual motivo, sei que ponderava sobre a “voz da razão” e a “mão na consciência” quando entrei no meu carro pronto a escapar da próxima “paradinha” que o Nasci anunciara.
Qual o quê?
Quando dei por mim o velho Del Rey estava tomado por três marmanjos. O Nasci, óbvio, no posto de co-piloto a redesenhar nossa rota:
-- Mudança de planos. A essa hora, no Bixiga só tem bêbados. Vamos para o Riviera.
Não conhecia. Fiquei conhecendo naquela noite o bar que existia (será que ainda existe?) na avenida Consolação esquina com a avenida Paulista, do outro lado da calçada dos cines Belas Artes. Soube também que o estabelecimento de longa fama na boemia paulistana não fechava e me preparei para a longa jornada noite adentro.
Vou ser sincero.
Não posso lhes contar muita coisa do que aconteceu ali. Pela enésima vez, Nasci contava dos tempos em que perdeu um concurso para protagonista de uma novela de rádio. Ficaram à frente dele dois ‘canastrões’ que atendiam pelos nomes de Tarcísio Meira e Francisco Cuoco. Foi nesse ponto que adormeci após recostar a cadeira à parede. Só acordei dia claro com os amigos rindo a valer.
Pensei que debochavam do meu sono fora de hora e lugar.
Mas, eles me contaram o motivo das sonoras gargalhadas.
Minutos depois que chegamos, um senhor se aproximou da turma e se pôs a ouvir as histórias do Nasci. Fazia cara de interessado. Ofereceu uma rodada de cerveja para a turma, outra e mais outra. Só aí teve coragem de dizer o motivo de tanta cortesia. Estava varado de vontade de fumar. Não havia mais cigarros para vender no bar. Só restava a nossa mesa e ele se aproximou. Percebeu que o Nasci tinha um isqueiro que girava entre os dedos enquanto falava.
Era o sinal.
Depois de se enturmar a troco sabemos do quê, fez a pergunta:
-- O amigo aí tem um cigarro para me oferecer?
O Nasci, naquele seu inimitável estilo, respondeu:
-- Ih, rapaz, vou ficar lhe devendo. Só fumo cachimbo...
E mostrou o cachimbo holandês que a turma do jornal lhe deu num final de ano.
Era dia claro quando saímos do bar, onde nunca mais voltei.
Começamos pela padaria da esquina da rua Bom Pastor com a Lucas Óbes. A primeira parada justificava-se por dois motivos: beber umas e outras e olhar a filha do portuga, a bela Marina, que vez ou outra dava o ar de sua graça por ali e ajudava o pai e a mãe no sacro ofício de dar de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede.
Explico logo que o meu pessoal, nessa hora, tinha sede. Muita sede.
Eu, não. Como meus cinco ou seis leitores sabem, só tomo Coca Light. Talvez nesses esmaecidos tempos, minha preferência variava entre a Coca normal e a Ginni – quem se lembra? Já os meus camaradas derrubavam legal dúzias de cervejas que rebatiam com goladas de cachaça ou de uma bebida estranha, chamada stainegger.
Lá, ríamos e contávamos nossas prosas vividas ou inventadas – importante era o enredo – até que, inevitável, batesse uma “fominha esperta” que nos levava a algum restaurante onde ficávamos até o dono nos expulsar. Naquela noite, se bem me lembro, foi O Rei do Frango Assado, ali na rua Padre Marchetti, próximo à avenida Nazaré.
Alguns debandavam no meio da jornada. Uns já não se agüentavam em pé. Outros começavam a regular a grana e também ficavam pelo caminho. E havia os que não tinham coragem de acompanhar a horda de breacos. Eram os sensatos.
No primeiro grupo, o dos trança-pernas, nunca me inclui. No segundo, o dos durangos, também não. Tinha um acerto com os mais chegados e rateávamos a parte de quem atravessava um momento difícil. Nunca tive vocação para herói. Mas, nessa noite, mesmo um tanto atarantado, eu fui...
II.
Às vezes, penso que não aconteceu nada do que aconteceu ali naquele fim de noite de sexta e início da madrugada de sábado. Foi surreal. Tenho a impressão de que posso ter inventado; mas, juro, não inventei, não.
Aconteceu.
Vou tentar descrever o cenário.
O enorme salão do tradicional restaurante vazio e às escuras. Ou melhor, quase vazio e quase às escuras. Só havia iluminação em dois pontos. À esquerda de quem entrasse ali àquela hora, veria uma fileira de garçons junto ao balcão e o caixa, contrariados, aflitos e silenciosos. Ao fundo, quebrava a penumbra a luz sobre a mesa onde se encontravam meia-dúzia de ‘gatos pingados’. Eu, inclusive.
O pessoal da Casa já havia tentado de tudo para abreviar nossa estadia por ali. Em outras palavras, os senhores ali queriam mesmo era nos expulsar e fechar o recinto. Tiraram as toalhas das mesas, subiram as cadeiras, andaram em rodopios retirando os pratos da nossa mesa; os copos, não, pois não os largávamos.
Chegaram a dizer – golpe baixo – que o chopp havia acabado.
-- Que venha cerveja, então, saudou o Nasci.
Vieram duas garrafas prontamente sorvidas e aí – outro golpe baixo – passaram a nos servir cerveja quente. O que, diga-se, só aumentou a ira do Nasci que, à essa hora, discorria sobre os filmes do Truffaut que ele nunca assistiu.
Não tínhamos noção das horas. Nos divertíamos – e ponto.
Lá pelas tantas apareceu um senhor de expressão amarfanhada, como se o tivessem tirado da cama. Tinha cara de poucos amigos e já entrou bronqueando com os funcionários. Alguém dali havia ligado para o tal, o dono do restaurante, e agora ouvia o sermão. Aliás, todos ouviam.
Não vou lembrar as palavras, mas o teor me é inesquecível. Não queria o estabelecimento aberto até àquela hora. Já havia avisado. Questão de segurança. Se desse algum problema, mandaria todos embora por justa causa. Ainda porque não conseguiam se livrar “de um bando de bêbados”.
Indignado com as palavras do homem, que sei lá como ouviu mesmo etilicamente nas alturas, Nasci levantou-se e, no mesmo tom, vociferou:
-- Garçom, a conta! Vamos embora, essa espelunca não é digna da nossa presença.
Saímos temerosos.
O que deu no Nasci?
Para onde foi o proverbial bom-humor?
-- Para o Bixiga, meus caros. Vamos para o Bixiga, lá os bares nunca fecham.
O bom-humor estava ali - aliás de onde nunca saiu. Nós é que estávamos sem rumo...
III.
Não sei se vocês já ouviram a voz da razão. Ou se, por vias das dúvidas, colocaram a mão na consciência. Não sei.
Àquela época, em que era jovem e inconseqüente, talvez imaginasse que essas expressões populares fossem apenas invencionices de Dona Yolanda, minha mãe, que vivia a repeti-las aos meus ouvidos - até porque, como disse, eu era jovem e inconseqüente.
Não que lhe desse grandes motivos. Me considero até hoje um cara pacato, comedido até; pois, como disse nos posts anteriores, só tomo Coca Light. Nem de cerveja eu gosto.
Enfim...
Sei lá por qual motivo, sei que ponderava sobre a “voz da razão” e a “mão na consciência” quando entrei no meu carro pronto a escapar da próxima “paradinha” que o Nasci anunciara.
Qual o quê?
Quando dei por mim o velho Del Rey estava tomado por três marmanjos. O Nasci, óbvio, no posto de co-piloto a redesenhar nossa rota:
-- Mudança de planos. A essa hora, no Bixiga só tem bêbados. Vamos para o Riviera.
Não conhecia. Fiquei conhecendo naquela noite o bar que existia (será que ainda existe?) na avenida Consolação esquina com a avenida Paulista, do outro lado da calçada dos cines Belas Artes. Soube também que o estabelecimento de longa fama na boemia paulistana não fechava e me preparei para a longa jornada noite adentro.
Vou ser sincero.
Não posso lhes contar muita coisa do que aconteceu ali. Pela enésima vez, Nasci contava dos tempos em que perdeu um concurso para protagonista de uma novela de rádio. Ficaram à frente dele dois ‘canastrões’ que atendiam pelos nomes de Tarcísio Meira e Francisco Cuoco. Foi nesse ponto que adormeci após recostar a cadeira à parede. Só acordei dia claro com os amigos rindo a valer.
Pensei que debochavam do meu sono fora de hora e lugar.
Mas, eles me contaram o motivo das sonoras gargalhadas.
Minutos depois que chegamos, um senhor se aproximou da turma e se pôs a ouvir as histórias do Nasci. Fazia cara de interessado. Ofereceu uma rodada de cerveja para a turma, outra e mais outra. Só aí teve coragem de dizer o motivo de tanta cortesia. Estava varado de vontade de fumar. Não havia mais cigarros para vender no bar. Só restava a nossa mesa e ele se aproximou. Percebeu que o Nasci tinha um isqueiro que girava entre os dedos enquanto falava.
Era o sinal.
Depois de se enturmar a troco sabemos do quê, fez a pergunta:
-- O amigo aí tem um cigarro para me oferecer?
O Nasci, naquele seu inimitável estilo, respondeu:
-- Ih, rapaz, vou ficar lhe devendo. Só fumo cachimbo...
E mostrou o cachimbo holandês que a turma do jornal lhe deu num final de ano.
Era dia claro quando saímos do bar, onde nunca mais voltei.
(*) O Nasci é meu pai, e hoje ele faria 74 anos.(Leopoldina)
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